19 de abril de 2012

Carta para um diálogo entorno da miséria ôntica e a ética negativa.

Cabrera, 

Assisti à sua fala no seminário pela internet. Parabenizo a você e ao Marcus pelo fôlego da discussão. Paradoxalmente ou não, me parece muito valioso o esforço que vocês estão fazendo entorno da discussão da desvalia de ser, pessimismo e otimismo. 

Fabiano Lana fez uma interessante pergunta para você entorno da questão da relação (ou da falta de relação) entre a estrutura terminal e questões sociais. Se haveria alguma esperança no quadro de uma mudança social para a melhora da condição moral e sensível dos seres humanos. Você respondeu pela negativa. O interesse da minha colocação (tateante) se coloca na proximidade desse problema, isto é, do problema de uma relação entre a condição social e a terminalidade. 

No livro que você escreveu com o Thiago Lenharo ("Porque te amo não nasceras), na página 47 encontramos: "A imensa maioria da humanidade (os 'excluídos' de Enrique Dussel) não está em condições sociais de perceber o desvalor estrutural do ser. Sua situação onticamente penosa os faz acreditar, até a morte, que seus males são sociais, eventuais, contingentes e evitáveis." Você afirma ainda que os bens ônticos de que são privados os fariam ver alimento, vestuário e habitação num horizonte que os torna maravilhosos. O que não acontece numa situação normal e justa. Continuando na pagina 48 temos: "Eles [os miseráveis] são excluídos da visão da estrutura mortal (terminal) do ser, preservados dela ao serem afundados no intramundo que os exige de maneira absorvente e exclusiva: famintos e sem tempo para o ser". 

Aqui coloco a primeira questão: 1) A despeito dos esforços dos excluídos para sair ou diminuir a miséria ôntica, seria um mal negocio vencê-la e trocá-la por uma situação normal e justa de onde se perceberia a estrutura da terminalidade? A penosa e deficitária lida ôntica não poderia, no quadro da vida numa estrutura de terminalidade e inabilitação, ser uma boa distração? Quero com essas perguntas estimular a discussão, e não atribuir, apressadamente, implicações e avaliações implícitas ao esforço do seu pensamento. 

Voltando a questão do Fabiano Lana e articulando a essa parte do livro (p.47-8) eu diria que esperava que você limitasse na sua resposta (como limitou) as pretensões de soluções sociais para o patamar básico da ética negativa... E acho que está bem assim. Por outro lado, eu esperava que viesse um adendo junto com isso, no sentido do que você sugere como justiça negativa (p.48). Isto é, que situasse, como você faz no livro, o pessimismo estrutural como um luxo de classe. (Por sinal, eu gostaria vivamente de ler mais coisas suas que tratassem daquele confronto ali esboçado!). Isso me parece da maior importância! Ainda que a terminalidade seja trans-social, trans-historica, etc, seu acontecimento é situado desde a perspectiva dos que vem a nascer. 

Na sua fenomenologia da estrutura terminal do ser deveria entrar (na minha opinião, muito antes das filas dos caixas eletrônicos) a valoração negativa que os moradores da Estrutural recebem dos passageiros do ônibus ao entrar: basta olhar os pés sujos de lama deles e os moradores de Taguatinga lá dentro os desprezam como aqueles que vêm da invasão. Isso me parece importante porque ainda que o pessimismo estrutural seja um luxo de classe ele certamente pretende mais do que ser uma leitura da desvalia estrutural do ser confinada aos hábitos e acontecimentos normais de uma vida comum de classe média. Daí vou para minhas últimas perguntas: 2) Como falar da estrutura terminal do ser poderia garantir-se de não desconsiderar o acontecimento de ser do outro? Em outros termos, não deveria ser uma preocupação central da ética negativa não estabelecer relações de desconsideração com o particular? 3) Por que a situação de não estar submetido à miséria ôntica (de onde se vê plena e corretamente o desvalor estrutural do ser) é normal e justa? 

Nos últimos dias tive uma discussão com Fabiano Lana sobre questões relacionadas ao que apresento aqui, tendo ele dito coisas interessantes que eu o incito a elaborar novamente nesse espaço. 

Abraços, 
Gabriel Silveira. 

P.S.: Sei que houve mudanças terminológicas importantes no seu pensamento, tendo você abandonado o vínculo direto com a distinção heideggeriana entre ser e ente, preferindo falar em termos de terminalidade estrutural... Mantenho o termo miséria ôntica por referência ao livro “Porque te amo não nascerás” imaginando que ainda haja espaço no seu pensamento para a preocupação indicada por meio daquela terminologia, ainda que reelaborada ou reestruturada em outros termos.

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